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terça-feira, 12 de setembro de 2023

A Transformação das Molduras Sociais

Em um mundo em constante mutação, onde as distinções sociais se tornaram tão difusas quanto a fumaça que escapa de uma pizza amolecida, assistimos a um curioso espetáculo cotidiano: a interação entre Dona Florinda e o entregador de comida. Um retrato da nossa era, onde hierarquias líquidas flutuam como ondas, deixando para trás as antigas normas de etiqueta e comportamento polido. Não é mais o dinheiro que determina os contornos da sociedade, mas sim a capacidade de pedir uma refeição através de um aplicativo.

Remontando aos tempos em que os princípios da etiqueta davam as cartas, havia um teatro de formalidades que evocava uma dança social coreografada. Porém, devemos admitir que esses preceitos eram aplicados somente entre aqueles que se reconheciam como membros de uma mesma casta. A horizontalidade social, ou a falta dela, definia o escopo das boas maneiras. O grito se resguardava para a empregada, o respeito era atrelado à escritura do imóvel, e a harmonia resultava de um jogo de egos e endereços.

Contudo, o mundo tomou um giro inesperado, e as molduras sociais que outrora delineavam as interações desbotaram. Não é mais necessário um brasão de linhagem ou um título de nobreza para obter reserva em um restaurante caro. Hoje, um influenciador digital pode ser mais bem-visto do que um descendente de uma linhagem centenária. O neologismo "precariado" emerge para descrever aqueles que, apesar de escolarizados, se sentem inseguros e estão sempre à beira de um abismo financeiro.

Ao fazer um pedido por aplicativo, a realidade se dissolve e a fantasia toma conta. Somos instantaneamente transportados para uma cena de refinamento aristocrático, mas a chegada da comida amolece a ilusão. Como Dona Florinda, cercada por pizzas e sanduíches, nossos pequenos momentos de soberania são seguidos pela dura realidade da igualdade material. O mundo pode estar de cabeça para baixo, mas o dilema persiste: como nos mantermos separados da plebe?

A busca por uma identidade única se torna uma necessidade premente. Em um cenário onde os brasões são substituídos por carros, casas e contas bancárias, a distinção social se agarra a objetos tangíveis. Os trajes formais dão lugar ao conforto do moletom, e a cena se repete: o entregador chega, e a narrativa de superioridade ressurge. Dona Florinda, com sua pequena pensão e seus delírios de grandiosidade, encontra conforto na humilhação de seus iguais, reafirmando sua posição de "especial".

No entanto, essa saga de superioridade não é apenas uma comédia de costumes. Ela é um reflexo de nossos medos e inseguranças. A grosseria que permeia nossa sociedade é uma manifestação do ressentimento e da ansiedade que habitam nossos corações. O entregador de comida, o símbolo do "outro", torna-se o alvo de nossas frustrações, uma válvula de escape para nossas próprias limitações.

Enquanto aguardamos a pizza amolecida, somos convidados a refletir sobre nossas próprias interações e atitudes. A evolução das molduras sociais nos desafia a repensar o significado de respeito e humildade em um mundo em constante transformação. A busca por uma identidade distinta não deve ser uma jornada de menosprezo, mas sim uma busca por autenticidade e compreensão mútua. Dona Florinda, em sua pequena vila, pode descobrir que a verdadeira esperança não é encontrada em humilhar os outros, mas sim em construir laços de solidariedade e empatia que transcendam as diferenças. O aplicativo pode entregar a comida, mas a construção de um futuro mais harmonioso exige nossa própria ação e esforço.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

“A partir do momento em que os nossos atos têm uma testemunha, quer queiramos quer não, adaptamo-nos aos olhos que nos observam”, do livro A insustentável leveza do ser

 A natureza humana é intrinsecamente social, e nossa existência é moldada pela interação com os outros. Somos seres que vivem em sociedade, e essa convivência implica em uma constante troca de olhares, julgamentos e influências. A frase “A partir do momento em que os nossos atos têm uma testemunha, quer queiramos quer não, adaptamo-nos aos olhos que nos observam” revela uma profunda verdade sobre a dinâmica social e a maneira como nos relacionamos com os outros.

Quando nossas ações são observadas, um mecanismo interno é acionado, levando-nos a considerar a percepção que os outros têm de nós. Mesmo que desejemos agir com autenticidade e de acordo com nossos próprios princípios, a presença de uma testemunha nos faz questionar se estamos correspondendo às expectativas externas. Essa consciência social nos impulsiona a adaptar nosso comportamento para nos enquadrarmos nos padrões estabelecidos ou para evitar possíveis julgamentos ou rejeição.

Essa adaptação não deve ser vista como uma mera subserviência ou renúncia à individualidade, mas sim como uma manifestação da nossa necessidade de pertencimento e aceitação. Afinal, somos seres sociais que anseiam por conexão e reconhecimento. Dessa forma, ao nos adaptarmos aos olhos que nos observam, buscamos construir uma identidade socialmente aceitável e congruente com as normas do grupo em que estamos inseridos.

No entanto, essa necessidade de adaptação também pode trazer consigo uma certa ambiguidade. Ao nos moldarmos para corresponder às expectativas externas, corremos o risco de perder nossa essência e autenticidade. Podemos nos distanciar de nossos valores e aspirações pessoais, sacrificando nossa individualidade em prol da conformidade social.

A busca por um equilíbrio saudável nesse processo é um desafio constante. É fundamental desenvolver a consciência de quem somos e o que realmente valorizamos, a fim de encontrar uma harmonia entre a nossa autenticidade e a necessidade de nos adaptarmos aos olhos que nos observam. A autenticidade genuína não implica em negligenciar a influência social, mas em ser fiel a si mesmo enquanto reconhece e considera as perspectivas e expectativas dos outros.

Portanto, ao refletirmos sobre a frase em questão, somos levados a ponderar sobre a complexidade das relações humanas e o impacto que as testemunhas têm em nossos atos. A consciência social nos convida a uma constante reflexão sobre a nossa identidade, nossos valores e a maneira como nos relacionamos com o mundo ao nosso redor. Encontrar a nossa voz interior, enquanto nos adaptamos aos olhos que nos observam, é um desafio filosófico que nos leva a uma jornada de autodescoberta e crescimento pessoal.